domingo, 17 de dezembro de 2017

2017: ciência para o negro, pesquisa ativista e transgressões sem miséria

Entre uma confraternização e outra, chega a hora dos balanços que nos fortalecem para continuarmos a caminhada. Este ano, repleto de realizações, foi o momento em que a questão da "dupla consciência", de ser intelectual e negra, pontuada, de formas diversas, por autores como William Du Bois e Paul Gilroy, passando por feministas do quilate de Lelia Gonzales, Patricia Collins e Sueli Carneiro, bateu forte. Enfronhada nas políticas de amor e autocuidado, passei 2017 tentando responder a seguinte pergunta: quais os caminhos possíveis para conjugar de forma saudável as identidades de acadêmica e mulher negra? As respostas não são de difícil tessitura, se consideramos que a localização como Intelectual Negra, no mínimo, duplica o nível de exigências e expectativas. De um lado, temos as agências como a CAPES, responsável pelo monitoramento dos programas de pós no Brasil, que "recomenda" que professores publiquem no mínimo de um a dois artigos AI, AII ou BI, anualmente, formem de três a oito mestres e doutores, ofereçam disciplinas, participem de seminários e congressos nacionais e internacionais e por aí vai (isso sem contar o que é esperado para a graduação). Por outro, a tomada de posição referente a um discurso público de acadêmica negra, que passa por produzir ciência que beneficie diretamente a comunidade negra dentro de um espaço com pouco acolhimento a esta perspectiva.


A assunção da intelectualidade negra desemboca em uma visibilidade e um reconhecimento que geram expectativas e demandas imensuráveis, relacionadas a um amplo público de estudantes que não se sentem representados pelos currículos hegemônicos, amigos, familiares, seguidores em redes sociais. Isso faz com que o repasse das realizações de 2017 também deva passar por pontuar a importância de nomear o fazer acadêmico como pesquisa ativista, comprometida com a objetividade e o rigor científicos necessários para combater às estruturas opressoras, tais quais o racismo, o machismo e a lesbotransfobia.

Turma de Prática de Ensino de História Transgressora, 2017.
Grupo PET Diversidade UFRJ, com os resultados da oficina de colagem Personagens do Pós-abolição, 2017.

Em meio a essa disputa de narrativas e sentidos de academia, agradeço às pessoas que contribuíram para que conquistas tais quais o lançamento do catálogo Intelectuais Negras Visíveis, a publicação da coletânea Histórias da escravidão e do pós-abolição para as escolas, a realização bimestral do evento Intelectuais Negras Diálogos no IFCS, o bem-sucedido trabalho na Prática de Ensino de História Transgressora, a gestão compartilhada do projeto Personagens do Pós-abolição, a construção do Programa Ciência para o Negro no Grupo PET Diversidade UFRJ, o projeto Qual é a sua semente?, em parceria com a Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, além da participação em dezenas de bancas de mestrado, doutorado e a escrita de artigos científicos, fossem possíveis. 

Encontro Intelectuais Negras Diálogos conduzido pela Profa. Ms. Cludielle Pavão, IFCS-UFRJ, 2017.

Lançamento do catalogo Intelectuais Negras Visíveis na XV Festa Literária Internacional de Paraty, 2017.
Lançamento da coletânea Histórias da escravidão e do pós-abolição para as escolas.

2017 está de partida, reafirmando a certeza de que Mulher Negra, carreira acadêmica, trabalho qualificado, prestígio e outras junções que, a princípio, não cabem na história do Brasil, são, na real, o nosso número.



sábado, 21 de janeiro de 2017

Viver e morrer pelo amor no Topo da Montanha


“O feminismo branco forjou-se nas costas das Mulheres Negras”. 
(Feministas Negras na Marcha de Mulheres - Washington, 21 de janeiro 2017).

Taís Araújo e Lázaro Ramos homenageiam Dona Ruth de Souza
Foto: Marcos Ferreira/Brasil News

Neste escreviver que abre os trabalhos de 2017, o exercício será dedicado a narrar, sob o ponto de vista de uma historiadora do pós-abolição dos EUA, a linguagem de possibilidades trazida por O topo da montanha, que dizendo a que veio escolheu como data de estreia para temporada carioca o 20 de janeiro – dia de Oxóssi, orixá da caça e da fartura. A representatividade negra materializada nos corpos e nas performances dos atores, na expressiva presença de público negro e na mensagem que verdadeiramente tocou minha alma: “quem vive pelo amor, morre pelo amor” serão os bordados de minha colcha.

Ontem foi o dia de lembrar que em janeiro de 2009, assisti à posse do presidente Barack Obama no Centro de Estudantes da New York University. Eu tinha 29 aninhos... Cheguei lá – minha primeira viagem internacional - para realização de estágio de doutorado sanduíche. O discurso We Can, a representatividade da família Obama, o contato com pessoas de todas as partes do mundo, a família dominicana que Janny – “irmã da alma”, ofereceu-me, as descobertas gastronômicas, o aprendizado do Inglês em uma escola pública para imigrantes, na maioria ilegais, foram experiências que mudariam para sempre o curso do meu rio...

Assistindo ao espetáculo no SESC Ginástico, emocionei-me. Agradeci à minha mãe Sonia por ter me ensinado o sentido mais valioso de intelectual negra: viver com amor. Sonia era uma mulher de amores. Ontem compreendi de forma mais profunda que o amor e à devoção às palavras que vêm da alma constituem-se no principal elo da nossa união.  

A peça é estrelada por Taís Araújo e Lázaro Ramos e inspirada no livro de Katori Hall, uma jovem de 25 anos, que transgrediu mitos e verdades, narrando como teria sido o último dia de vida de Martin Luther King, o reverendo afro-americano, líder pacifista dos direitos civis e Prêmio Nobel da Paz, assassinado em 04 de abril de 1968, na cidade de Memphis, na sacada do Hotel Lorraine, aos 39 anos. Um crime legitimado pela política de segregação racial e pela supremacia branca no país.


Pensar na totalidade do texto, com forte investimento no resgate da imagem do Dr. King como um homem comum, repleto de “fraquezas mundanas” e de Camae, a camareira, dona de um discurso potente de humanidade Negra, faz lembrar do texto sagrado “Vivendo de Amor”. Nele, a feminista afro-americana bell hooks descreve de forma sublime o ato de curar  a comunidade negra através do amor:

Expressamos amor através da união do sentimento e da ação. Se considerarmos a experiência do povo negro a partir dessa definição, é possível entender porque historicamente muitos se sentiram frustrados como amantes. O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar.

Estar em um teatro, espaço hegemonicamente branco e elitista, conhecendo uma história de protagonismo Negro na primeira pessoa é acessar o “templo da justiça”, sempre lembrado por King. Olhar para a cadeira ao meu lado e ver um corpo preto igual nas nossas diferenças é restituir o “verdadeiro significado dos [nossos] princípios”. Em uma cidade organizada para desumanizar pessoas Negras, cruzar as escadas e receber sorrisos e olhares de cumplicidade da negrada – de gêneros, classes, gerações, sexualidades diversas - é viver de amor.

Jornal Negro "A liberdade", São Paulo, 1920
Coleção: Jornais da Raça Negra, Fundação Biblioteca Nacional

Caderno interativo da peça O topo da montanha. 
(nele as pessoas são convidadas a registrar suas referências negras).

Na incessante busca pelo “oásis da liberdade”, a centralidade do ato de cuidar apareceu em detalhes que passarão em negro para sempre nas nossas lembranças. As boas vindas contagiantes da atriz e do ator minutos antes de iniciar a peça. Os tablets espalhados no saguão exibindo títulos da coleção de documentos históricos  “Jornais da Raça Negra”. Um lindo caderno interativo, o qual espera-se seja preenchido com nomes de figuras Negras referências para as pessoas da plateia - nomes que poderão mais adiante ser incorporados à peça (ops, sem spoiller!). A belíssima homenagem em vida à estrela de 94 anos, Dona Ruth Souza, fazendo-nos compreender – em lágrimas – o sentido prático de descer do palco. Tudo isso nos dá força para lutar contra o Alcaçuz nosso de cada dia e chegar às alturas. Como aprendemos com o Dr. King, do topo da montanha deixaremos "a liberdade soar". Sigamos vivendo de amor!



O Topo da Montanha – Imperdível!

21/01 a 19/02 
Av. Graça Aranha, 187 - Centro