terça-feira, 30 de agosto de 2016

Passados Presentes que habitam o Quarto de Empregada

Dona Laudelina de Campos Melo, fundadora do primeiro Sindicato de Trabalhadoras Domésticas do Brasil, no Baile da Pérola Negra, Campinas, 1957. 

No começo deste mês, fui convidada, por indicação da historiadora e amiga Martha Abreu (obrigada!), para participar de uma matéria do Caderno Morar Bem do jornal O Globo. 

Título: Quartos de empregada doméstica geram debate sobre segregação.

Estes convites são sempre facas de dois gumes, se levarmos em conta que a grande imprensa é uma das maiores responsáveis pelo confinamento das imagens de mulheres negras à hipersexualização e à subalternidade. Ao mesmo tempo, é muito importante ocupar estes espaços com nossos pontos de vista. 

Eis aí um debate essencial: qual o nosso papel como intelectuais públicos na academia?

Ao ler a matéria fiquei pensando que, apesar do cenário tenebroso que vivemos, as coisas continuam mudando. Há bem pouco tempo, a matéria seria feita ouvindo apenas "especialistas" brancos, despejando conhecimentos sobre o trabalho de mulheres, em sua maioria esmagadora, negras. Óbvio que isso não resolve o problema, afinal tenho consciência de que fui "parar lá" a partir do meu lugar de excepcionalidade, de "Preta Dotora". 

À revelia da tradição sindical da categoria profissional, iniciada em 1936, por Laudelina de Campos Melo e da própria familiaridade das elites com a exploração do trabalho doméstico, as vozes das principais interessadas não foram ouvidas. Mas continuam a ecoar haja vista o estrondoso sucesso da página Eu empregada doméstica.

Episódio Laudelina de Campos Melo.
Fonte: Série Heróis de Todo Mundo, Projeto A Cor da Cultura.

Na íntegra, minhas respostas às perguntas do jornalista Eduardo Vanini, a quem agradeço o convite. 

Ah sim! O quarto de empregada não "gera debate sobre segregação". Ele é a prova viva do crime cometido e perpetuado pelo Brasil escravocrata, patriarcal e desigual.

 Página Eu Empregada Doméstica.
Fonte: Facebook


Sentidos históricos do quarto de empregada no Brasil

Entrevista de Eduardo Vanini com Giovana Xavier, professora da Faculdade de Educação e coordenadora do Grupo de Estudos Intelectuais Negras UFRJ.

- Na opinião da sra., qual a conexão entre o quartos de empregada de casa e apartamentos e as senzalas?

Não há como discutir o que o quarto de empregada representa no Brasil sem falar da escravidão e de sua violenta e longa história. O quarto de empregada é um símbolo – real e concreto – que articula passado e presente, naturalizando desigualdades de gênero, raça e classe. Não precisa ser especialista no assunto para perceber a olhos nus que a maioria da força de trabalho que compõe esta categoria é feminina (95%) e da raça Negra (80%), segundo dados do IBGE. Embora criados em tempos distintos, os quartos de empregada e as senzalas são frutos de desigualdades historicamente criadas ao longo de séculos de escravidão e, posteriormente, no pós-abolição, um longo período marcado pela ausência de políticas públicas de combate às desigualdades entre as populações negra e branca. Se no passado escravista, a senzala era o “lugar de negro”, em 2016, o “quarto de empregada” representa este lugar. É óbvio que muita coisa mudou desde a abolição da escravatura, mas é interessante observar permanências, especialmente na linguagem relacionada à história do trabalho doméstico. A terminologia “apartamento com dependência”, atribuída pelo mercado imobiliário a apartamentos e casas que possuem quarto de empregada é um exemplo. A definição deste cômodo pelo substantivo “dependência” mostra a atualidade da frase escrita pela autora Carolina Maria de Jesus em seu best-seller Quarto de despejo: Diário de uma favelada: “a favela é o quarto de despejo dos pobres”. Assim como as favelas, as senzalas foram espaços construídos para confinar e controlar populações escravizadas no passado e de pessoas pobres – em sua maioria negras – no presente. Esta política segregacionista, ilustrada por estas duas construções arquitetônicas, permanece levada a cabo com base na visão conservadora das elites de que as “classes perigosas” – terminologia do final do século XIX, precisavam ser disciplinadas e vigiadas. 

- Que elementos físicos (disposição do espaço, infraestrutura...) dos quartos de empregada como conhecemos mostram essa conexão? 

Em geral, os quartos de empregada são cubículos localizados em porões, sótãos ou como vemos com grande frequência na zona sul carioca, na copa ou na cozinha. Em contextos rurais, os quartos de empregada costumam ocupar o lado de fora das casas. Não são poucos os casos de trabalhadoras, muitas das quais meninas de oito ou nove anos escravizadas e que dormem em celeiros, galinheiros ou mesmo ao relento, nas varandas das patroas. Quando estes cômodos de fato existem, acho que tanto a disposição como a sua própria existência personificam algo que é muito caro no Brasil. A nossa cultura escravocrata, com a máxima do “lugar de negro”. O quarto de empregada é uma paisagem violenta, relacionada ao que eu chamo de “cultura do lugar”. A visão preconceituosa de que as pessoas negras, especialmente as mulheres negras, que compõem a maioria das trabalhadoras domésticas do país, nasceram para servir aos outros, em especial, às famílias brancas. Vários elementos deste espaço desigual reforçam tal imaginário. O tamanho minúsculo, o mobiliário – quando muito uma cama e uma televisão, a ausência de janelas, a inexistência de fechaduras nas portas para garantir o livre acesso das patroas e patrões para fins de controle e vigilância, que consideram legítimos. Em termos de infraestrutura, o que se vê por aí são quartos de empregada que abrigam, quando muito, uma cama ou beliches. Devemos lembrar que, muitas vezes, empregadas domésticas com funções distintas (arrumadeiras, babás, cozinheiras, faxineiras) dividem o mesmo cômodo. Estes cômodos geralmente são minúsculos, sendo chamados de cubículos, não por acaso a mesma denominação que recebiam os quartos alugados em cortiços pelas famílias pobres na virada do século XIX para o XX.

- Essa é uma realidade muito particular do Brasil? Por quê? 

Sim. Em primeiro lugar, o Brasil é o país com o maior número de trabalhadoras domésticas em todo o mundo. Esta realidade apresenta particularidades relacionadas à história da escravidão e da distribuição de renda. Pesquisas demonstram que 1% da população concentrava em suas mãos 27% da renda nacional em 2013. Todas as estatísticas do IBGE relacionadas à renda per capita, à moradia, trabalho, saúde e demais indicadores sociais, comprovam que desigualdades de classe são construídas de forma articulada com desigualdades de gênero e de raça. A maioria da categoria profissional é de mulheres. A maioria destas mulheres são negras. E a maioria da população negra é pobre. A articulação entre estes três eixos de opressão – elitismo, machismo e racismo- que, por seu turno, naturalizam a imagem do trabalho doméstico como destino inexorável das meninas e mulheres negras do nosso país, representadas pela grande mídia e pelas classes altas e médias como criadas para servir.

- Como está isso hoje? Na observação da sra., ainda há muitas empregadas vivendo nesses espaços ou isso começa a ficar cada vez menos frequente?

Na História costumamos afirmar que permanências e rupturas coexistem em um mesmo tempo. Este, a meu ver, é o caso tanto do trabalho doméstico quanto do quarto de empregada. Por mais que o Brasil seja formalmente um país livre, de forma geral, o regime de trabalho das empregadas domésticas envolve um sem fim de situações análogas aos tempos escravidão. O fato de, a despeito da regulamentação da profissão, ocorrida somente em 2013 e com ampla rejeição das classes alta e média, milhares de mulheres continuarem trabalhando sem direitos básicos respeitados (alimentação, transporte, férias, décimo-terceiro, folgas, dentre outros) e que reforça a impunidade no Brasil. O senso comum preconceituoso de que trabalho doméstico não é profissão, mas “ajuda”, o que, por seu turno, encoraja patroas e patrões a considerarem que fazem um favor “ao abrir as portas de sua casa”, “oferecendo um cômodo para mulheres que, embora “não confiáveis”, recebem a chance de serem tratadas como “praticamente da família”. Se quisermos pensar em rupturas, podemos observar um expressivo número de trabalhadoras domésticas que moram em suas próprias casas. Por mais que esta realidade indique certo grau de autonomia e liberdade em relação à família dos patrões, tal situação também representa um conjunto de vulnerabilidades sem fim. A maioria destas trabalhadoras mora em regiões periféricas, distantes de seus locais de trabalho. Dispensam longo tempo em transportes públicos de péssima qualidade, sendo submetidas a violências sexuais cotidianas como o “encoxamento”. Seu direito à jornada de trabalho de 9h/dia (com 1h de descanso) é desrespeita por empregadores. Dentre outras indescritíveis, estas experiências de opressão, naturalizadas pela cultura escravocrata, fazem com que, em muitos casos, a decisão de morar com a família para a qual trabalha seja a mais plausível, o que gera situações muito difíceis, como por exemplo o afastamento compulsório de seus lares e famílias. 

- Na sua visão, o que representa para uma pessoa viver nessas condições?

Seria importante que não só esta pergunta, mas todas as demais fossem também respondidas por trabalhadoras domésticas. Este respeito ao lugar de fala destas mulheres é condizente com a poesia de Cristiane Sobral, uma importante autora negra que escreve o seguinte: 

“Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos”.

Não vou mais lavar os pratos, de Cristiane SobralBrasília: Athalia Gráfica e Editora, 2010.

Nesse sentido de valorização dos pontos de vista de mulheres negras, principais interessadas e afetadas pelos sentidos do “quarto”, deixo um depoimento coletado em Eu Empregada Doméstica, página que comento na próxima questão. Dado o propósito da matéria de colocar em pauta os sentidos históricos do quarto de empregada, recomendo a divulgação da página e do conteúdo deste post.

“Ei universitárias (os) vocês querem nos ajudar?

Comece conversando com a moça (o) da limpeza, o cara da portaria e da segurança que passa invisível pelos corredores da faculdade.
Pergunte a ela (ele) se é bem tratada e se os seu direitos são assegurados por parte da empresa terceirizada ou da universidade.
Pergunte, se ela (ele) teve oportunidade de estudar e se não teve, ofereça aulas de alfabetização ou reforço.
Quem sabe essa pessoa não esteja precisando de alguém para conversar ou lhe informar sobre os seus direitos.
Talvez você possa mudar a vida de alguém de fato!”

Material de divulgação do teaser da webserie #euempregadadomestica

- A sra. chegou a presenciar ou ouvir relatos que mostram o quão absurda era ou é a situação das empregadas que precisam viver nesses quartos?

Afora os gravíssimos casos de estupro por patrões e seus filhos, ligadas à força do patriarcado e as violências na forma de xingamentos como “burra”, “incompetente”, “suja”, “vagabunda”, há milhões de relatos sobre as opressões que circunscrevem o trabalho doméstico. Um fato recente merece destaque. A incrível rapper santista, Preta Rara, ex-empregada doméstica, criou uma página nas redes sociais. Denominado “Eu Empregada Doméstica”, o espaço, que na semana do lançamento foi alvo de uma série de ataques machistas e racistas, reúne relatos de trabalhadoras acerca de uma infinidade de situações de abuso e exploração no exercício desta profissão. Trabalhadoras recebendo R$1,50 de diária. Relatando às patroas acidentes de trabalho e sendo proibidas de irem ao médico até que as tarefas fossem finalizadas. Mulheres obrigadas a beber água da bica. Impedidas de compartilharem louças e comidas. Proibidas de estudarem. Deparando-se com geladeiras trancadas com cadeado. Sendo acusadas de roubo e por aí vai. Considero que conhecer estas autobiografias é essencial para termos consciência que se tratam de histórias de vida de mulheres que lutam cotidianamente por respeito e reconhecimento como pessoas, sujeitas de direitos.

- Qual é a observação dos brasileiros, de uma maneira geral, sobre os quartos de empregada? Eles conseguem enxergar a segregação que representa?

Como dito acima, é hegemônica em nosso país a concepção de que a empregada doméstica é alguém que “ajuda” a patroa a cuidar da sua família, isso a despeito dela – a mulher que é empregada, ser a principal e, na maior parte dos casos, única a protagonizar os afazeres domésticos e os cuidados com as pessoas da casa. Esta naturalização do trabalho doméstico como sendo ajuda, apoio, colaboração – uma espécie de “participação especial” na tradicional família brasileira - legitima que profissionais contratadas para administrar a casa sejam levadas também a assumir o zelo pelo bem-estar de crianças, o que deveria ser restrito à babá, profissão catalogada na Classificação Brasileira de Ocupações. O Brasil tem uma grande dificuldade de assumir-se como um país racista e desigual. Em nome da falsa ideia de democracia racial, de que aqui negros, indígenas e brancos coexistem harmoniosamente, o trabalho doméstico é visto muito mais como um privilégio de mulheres das “classes perigosas” de conviver com as elites do que como uma profissão que reproduz desigualdades e laços de dependência entre ricos e pobres.

Entrevista concedida em 12/08/2016.



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