Sawabona

Visíveis na alegria e na tristeza


 “A roda gigante e o motor da casa grande”: “Ê... volta do mundo, camará! Alegria e tristeza alternam lugares na Roda Gigante, mesmo que o motor da casa-grande funcione a pleno vapor” 
(Cidinha da Silva, Sobre-viventes)

Acolhi de bom-grado a oferenda de Cidinha da Silva, quando em um dia de maio, o mês em que se celebram as mães (nem todas!) e a liberdade (controversa, sabemos), ela escolheu-me para comentar seu mais novo livro de crônicas, Sobre-viventes

A prosadora Cidinha da Silva.


Enganam-se se pensam que o convite foi marcado pelo “Prezada Profa. Dra.”, formalidade enfadonha, que pouco informa sobre quem somos, o que queremos e como estamos nos mundos e peles que habitamos. Nossa prosa deu-se em tempo real, papo reto e chão no mundo virtual. Esperta e sagaz, ela, em pleno “Mundo dos Aplicativos”, debruçou-se na sua janela, decorada pela luzinha verde acesa e cantou-me a pedra sobre a importância de cuidarmos umas das outras. A autora-inventora, filha-da-mãe que “sempre primou pela invenção de coisas”, inventou que o texto ficaria bacana no Preta Dotora na primeira pessoa. Aieia Povo Negro! Com isso a “Empresa familiar” criada em Mato Grosso expandiu-se. Na nova filial, assentada em terras cariocas, ao contrário da “médica-morta-viva” de “Notícia”, não me fiz de rogada. E, na travessia entre Rio de Janeiro e Parintins, brinquei com o fogo em formato de “chama literária”. A queimação de tomar contato com o escreviver-sobre-viver fez-me lembrar, nestes tempos tão difíceis, que juntas somos mais fortes. Conectei-me com as “escrevivências” de Conceição Evaristo. A “serendipidade” de Ana Maria Gonçalves e rememorei com as lágrimas do coração, a “invisibilidade como a morte em vida”, saber herdado da nossa ancestral Azoilda Loretto da Trindade, a quem Cidinha, sabemos, tanto admira. 

                                  Publicado pela Editora Pallas, Sobre-viventes é o sexto livro de crônicas da intelectual negra.


Em “O vizinho do 102”, a “mulher que saiu com o colchão na cabeça” levando a “menininha” fez-me sentir mais uma vez o peso que carregamos. Pensei na parecença (autônoma) da crônica com a escrita marcante de Esta ponte chamada minhas costas, de Gloria Anzaldúa. Perguntei-me: seria a ponte da feminista xicana a mesma por meio da qual passeiam as razões “felinas” para nos tornarmos mais e mais “senhoras de si” em relacionamentos afetivos como o que rola em “Vida de gato”? Nos últimos anos, aprendemos a nutrir o sentimento de que, embora existam gravíssimas falhas técnicas, “o sinal está finalmente aberto para nós”, seja em “Higienópolis” ou no sertão das Severinas. Estou certa de que brota daí o sentimento de sermos viventes. E tal chama coloca-nos a ardente tarefa de praticar e registrar – escreviver-sobre-viver - a partir dos nossos pontos de vista ainda que as expressões, “Quem ele pensa que é?" e “Sabe com quem está falando?” continuem nos informando sobre limites como os descritos em “Pra não dizer que não falei de flores”. Limites oriundos dos privilégios impostos pela “incúria da branquitude”, minuciosamente radiografada em “125 anos de abolição e eles gritaram mais uma vez que o poder é branco”. Viventes insistentes que somos, encaramos o “poder branco nos olhos e prosseguimos”. Afinal, aprendemos, aos trancos e barrancos, que é só “questão de tempo para que o Brasil negro encare o Brasil branco e racista e diga: perdeu playboy, perdeu!” 

Foto: Jacy Barbosa


Saberes como estes referem-se à recusa ao “pensar curto”, aprofundada em “Um caso de amor entre vela e pólvora”, no qual não somente a “cronista”, mas o “cobrador” e o “motorista” sagram-se como autores. São tantas as pessoas, tramas e coisas que me enredam, que passo a identificar-me não como uma, mas como A sobre-vivente de histórias que poderiam ser (e em algumas muitas medidas são) minhas. Em meio aos retrocessos que temos vivido, reconhecemo-nos duelando com as “antas heteronormativas” de “A heteronormatividade pira!” Fechamos os olhos e rememoramos a familiaridade de cenas de convencimento de feministas-patroas de que a PEC das Domésticas “é a lei que faltava para dar à trabalhadora negra o status humano que a exploração do trabalho doméstico lhe rouba”, como em “Antologia do quartinho de empregada no Brasil”. Identificamo-nos com as professoras perseguidas por ensinar história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas “espalhadas pelo país”, retratadas em “O pastor-deputado Feliciano e a lei 10.639”. 

Capa das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, 2004.


De sobre-aviso que denúncias por si só geram cansaço e tornam-se armas letais contra nós mesmas, Cidinha caminha soberana na encruza. Ela se recusa a fazer “Mais do mesmo, como dizem por aí”. Prova disso está em Maria Goreth, “Marigô” para as íntimas (como eu) e “matriarca africana” para moças “afro-surtadas”. E nas quebradas da cri-ação, nossa intelectual negra fala do amor, o necessário amor “que se vê na Brasilândia, no Campo Limpo, no Morro do Alemão que desce para o asfalto e exige o fim do extermínio da juventude negra, favelada, periférica. Amor que se respira na Revolta dos Turbantes”. 

Funk contra o Golpe na Praia de Copacabana, abr. 2016.

Foto: Pragmatismo Político


Escrevive também sobre a saudade dos que se tornaram ancestrais – “Emílio Santiago”, um “pedaço de Saigon”, companhia perfeita para a feijoada da Mangueira, e Nelson Mandela. Se “saudade é o amor que fica”, resta-lhe dizer “Voe, velho Madiba, espelho da liberdade”. Como uma sobre-vivente não se faz só de saudade, muitas vezes, precisamos desnaturalizar o “Brasil de relações raciais folclorizadas e sem coragem de explicitar os ardis do racismo e da discriminação racial”, narrado em “Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia”. Outras carecemos de nos entregar à folia, abrindo mão do “negócio enroscado”. Afinal de contas, “não há mal que sempre dure”, como profetiza o taxista em “Ah! É só alegria”. No fio da navalha, somos também confrontadas com as “baixarias” diárias promovidas pela TV Brasileira e com a violência cotidiana contra as classes pobres (pretas) em “Sobre o sono dos cavalos e o transporte público em São Paulo”, uma crônica que nos faz enxergar o sentido de “apertar o fecho da coleira de rebaixamento da condição humana”. 

Foto: Facebook da autora


Efeito similar desenrola-se em “Um capítulo das manifestações de junho” e em “Será a volta do monstro”. Embora não haja a exigência da escolha, assumo minha predileção por “Distinções entre abolição da escravidão e racismo”. Esta crônica conquistou meu coração de historiadora social, “Profissão de fé”. Sabe por quê? Ao lê-la, minha alma sorriu ao constatar que na simplicidade das palavras podem estar os argumentos mais sofisticados. Cidinha causou. Você simplesmente escreveu tudo o que a historiografia tem querido dizer com “pós-abolição no tempo presente”: “A abolição da escravidão é um tempo de longa duração. O evento terminou, mas o tempo dele perdura”. #tombei

A crônica “Assata Shakur e Nhá Chica” desenterrou memórias subterrâneas de uma pesquisadora ativista engajada com o contar histórias de mulheres pretas reposicionadas em minhas narrativas (e de outras autoras) como “intelectuais negras”. Fala aí Cidinha: “é uma questão de ponto de vista ou de vista de um ponto”? Dos alinhavos aos acabamentos, a responsabilidade de criar e assumir uma disciplina com título homônimo na UFRJ, a universidade mais antiga do Brasil, tem tudo a ver com o desejo de “aplaca[r] momentaneamente nossa carência de ícones que tenham história parecida com a nossa”. Trata-se de uma luta coletiva ligada ao “imaginário infinito e atemporal de luta[s]” travadas por nossas tatas, bisas, avós, mães (cis, trans, lésbicas) e por nós mesmas “para sermos livres e plenas”.
NÃO PERCAM #nóspornós





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